Cavadores (parte 1 de 5)

- Doutor, tenho certeza que não importa muito o que eu te falar, sei que você vai anotar no final da minha ficha “transtorno-sei-lá-o-que”. Bom, como não dá para evitar o que você vai escrever, então vou contar a verdade.
- Por favor... Entenda que estou aqui só para ajudar.
- Sei... Tanto faz. O que importa é que eu fiz o que tinha de ser feito. Não sou um babaca que ainda acha que uma biribinha é um tiro de canhoneira. Não mato pessoas achando que estou em uma missão em Laos, muito menos tenho pesadelos. Sempre dormi como uma pedra.
- Continue..
- Claro que vou continuar, estou aqui para falar, certo? Bom, matei muitos, incontáveis Charlies no Vietnã. Tiros na cabeça, baioneta na virilha, granada de mão dentro das trincheiras, cheguei até a tacar fogo numa barraca enquanto os safados dormiam. Entenda, nos mandaram para lá para fazer isso. Matar.
- Hm...
- Sem interjeições de merda, por favor, doutor. Como eu disse, nunca tive um pesadelo, nunca... Mas, então, há duas semanas Rodriguez me ligou. No início não me lembrei, e ele tagarelava sem parar: “eles estão vindo! Sinto o chão tremer! Eles vão nos pegar, entende? Jesustodoamado, eles vão chupar a carne de nossos ossos!”, a voz esganiçada estava me irritando eu ia desligar o telefone, mas...
- ...
- ...
- Continue, Tony, por favor.
- Oi? Sim, sim! Claro, é que eu pensei ter escutado algo... Deixa pra lá. Enfim, eu ia desligar o telefone, quando duas palavras fizeram com que meu estômago revirasse e que todos esses anos de sono tranqüilo fossem jogados na boca de cães sarnentos: “Cu Chi”.
Era o verão de 1967, eu e meu esquadrão estávamos no distrito de Cu Chi, terreno infestado de vietnamitas de merda. Éramos oito, todos bons homens, matávamos bem, por isso nos mandaram para Cu Chi, poucos batalhões voltavam de lá.
Caminhar no Vietnã durante o verão quer dizer chuva, muita chuva. Mosquitos do tamanho de pardais. Os filhas da puta até riam enquanto chupavam o seu sangue. A bota ficava encharcada o tempo todo, chamávamos a frieira de “erosões”, era isso, canyons se formavam entre seus dedos, você realmente podia ver os vermes rastejando entre a sua carne e comendo você vivo. Que Diabos! Isso não era maneira de morrer, sendo comendo vivo, entende?
Era sempre assim, avistávamos uma moita se mexendo, atirávamos e ela parava, ao caminhar até ela víamos sangue, mas corpo que é bom, nunca. Eles surgiam do nada, atiravam e sumiam. Rápidos, porém vesgos que só eles. Não acertavam um tiro sequer. Nós não errávamos, caçamos bem naqueles pântanos. Mas como diz o ditado, “água mole...”
Patrick, o canhoneiro, foi o primeiro a ir. Um dos Charlies surgiu atrás dele e atirou no joelho de Patty, um pedaço do osso dele bateu no meu rosto. Patty caiu chorando e meio desmaiado por causa da dor, ficamos sem reação, foi muito rápido. O maldito amarelo atirou duas vezes, à queima roupa, um em cada olho. Eles acreditam que isso faz com que você não vá pro céu. Foda-se. Eu mesmo matei esse, mas foi devagar. Minha Desert Eagle fez um rombo no ombro do Charlie, ele caiu olhando para mim. Passei a noite toda brincando com ele. Apresentei minha faca, meus arames, minhas seringas. Até dei sangue do Patty para ele, entende? Uma transfusão para ele durar mais. Não funcionou.
[winamp: seu jorge - samba que nem rita a dora]
postado por caio teixeira às 1:00 AM |
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