Rolou para um lado e para o outro. O travesseiro estava desconfortável, o cobertor lhe sufocava, o peso do próprio corpo incomodava. "Vai ser uma noite longa..."
Desistiu de dormir. Fazia uma semana que não sabia o que era fechar os olhos e só abri-los quando o sol já estava alto no céu. Ela sempre via a madrugada se arrastar, o horizonte clarear e o frio ir amenizando. Os olhos vermelhos ardiam, mas o sono não vinha. "Foda-se, vou tomar meu café".
Às 5 horas ela já tinha tomado banho e engolido uma torrada com manteiga. Ficava olhando para o relógio digital, os dois pontos que separavam a hora dos minutos piscavam junto com as batidas de seu coração. O cabelo molhado e preso atrás dava ao menos uma aparência de saúde.
Um pouco de maquiagem, ela não saia de casa sem passar um lápis preto nos olhos. Perfume, desodorante, creme hidratante para o corpo, para as mãos e para o rosto. Trabalhava em um escritório, todos trabalhavam em escritórios, a roupa era sóbria, cinza, normal. Saia de casa e encontrava no elevador com outras pessoas que trabalhavam em escritórios. Os olhares se esbarravam, mas nada mais do que um tropicão, há meses não sabia o que era dar um "bom dia" para alguém, se muito um "olá" para o porteiro do prédio.
No metrô ela vai espremida, talvez seja a única hora do dia que sinta certo calor humano, o resto do tempo é acompanhada pelo brilho da tela do computador. Conversa com todos pela internet, melhor assim, sem formalidades sociais, sem regras de conduta, sem contato.
Ao meio-dia ela sai para almoçar. Vai sempre no mesmo restaurante, não lembra direito quando começou a freqüentá-lo, mas gosta dele. Cada mesa é separada por um biombo de meia-altura, que só permite ver o topo da cabeça dos que se alimentam uns ao lado dos outros, mas que não querem trocar um só olhar. A comida é mastigada automaticamente, desde que parou de dormir nada tem muito gosto.
Volta para o escritório, toma um café junto com outros que voltaram do almoço para tomar um café. Vai para seu cubículo, sua baia e volta ao trabalho, ao brilho da tela do computador. Em frente ao seu computador, próximo do teto, fica um relógio que parou às 6h32 fazem 3 meses, ninguém arrumou, ninguém se preocupa com o tempo passando.
A turba que se levanta em uníssono de seus respectivos computadores a avisa que está na hora de voltar para casa. Desliga o computador, rega o cactos que fica ao lado dos clipes e posti-its, pega o casaco cinza e joga sobre o braço esquerdo, ela sempre carrega sua pasta com a mão direita.
Sai, junto com todos os outros que devem ir para casa. Toma o caminho para o metrô novamente, como sempre faz e sente, realmente sente, que há alguma coisa diferente. Um cheiro peculiar no ar, uma mudança de temperatura. Olha para os lados e vê que ninguém percebeu a mudança. "Devo estar ficando louca". Continua andando para o metrô, mas a sensação de estranheza se intensifica, a luz do final do tarde se diferencia, a brisa vira vento, as árvores balançam vigorosas. A caminhada continua.
Alguns passos antes de chegar ao metrô ela entende a mudança repentina. É a chuva. Está chovendo e ela sente os pingos. Sente a mudança de temperatura e o frescor da chuva. Ela pára enquanto todos os outros correm para se proteger. Cada gota na pele ressequida provoca uma nova sensação. Ela caminha até um banco público e se senta em meio ao aguaceiro que cai. Larga a pasta de um lado e o casaco do outro. Se sente molhada, se sente viva. Ela levanta o rosto e sente cada gota lhe atingir a face.
Os olhos se fecham e após uma semana ela dorme, mas acorda para si mesma.
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