Uma Aventura
Uma caneta marca a orelha, um ponto, meio azulado, não, arroxeado. O ponto é gelado. Abre a gaveta, a quinta da esquerda para a direita, tem que revira-la inteira até encontrar a agulha e o cateter, ambos ficam dentro de uma embalagem de plástico, de um lado transparente do outro fosco.
Rasga o plástico com as duas mãos, cada uma pegando de um lado da embalagem. Tira a agulha e o cateter, estão esterilizados, mas mesmo assim passa um algodão com álcool sobre eles, manias antigas.
Coloca a jóia, um "alteres", na ponta do cateter e o coloca na banqueta ao lado da maca. Ajeita o espelho para se olhar, observar o que será feito, o novo ferimento prolongado que fará conscientemente. Pega a agulha, passa o mesmo algodão com álcool utilizado para limpar os instrumentos sobre o lóbulo da orelha direita, um pouco da tinta que havia utilizado para marcação sai, sem problemas, a mira continua boa.
Encosta a ponta da agulha sobre o ponto arroxeado, respira fundo, mas não muito, afinal, já está acostumada. Conta mentalmente de sete a zero, a prima dela sempre fazia esse ritual antes de pular do trampolim, e pressiona a agulha. O barulho é seco, a dor é ínfima, menos dolorida do que uma vacina. O extensor é encontrado logo ao lado do espelho e colocado na entrada do pequeno furo feito no lóbulo. Dessa vez ela respira mais fundo, conta de sete a zero duas vezes antes de forçar o extensor pelo buraco.
Tudo fica meio escuro por alguns segundos, um grito de dor é afogado no orgulho, lágrimas brotam nos olhos, mas são logo secas pelas costas de uma das mãos livres, que em seguida vai até o cateter, ele é colocado sobre o orifício agora mais aberto e sangrando um pouco.
A jóia entra, o extensor sai e a dor permanece, é como se a orelha estivesse em brasa. Um outro pedaço de algodão é embebido com álcool e vai até o lóbulo ferido. O ardor é instantâneo, mas junto dele vem uma sensação de limpeza, de segurança.
Ela se olha no espelho, é a mesma de antes, nada mudou de verdade. Na realidade ela se acha um pouco mais enfraquecida. Junto com as gotas de sangue que saíram de sua orelha, seu caráter se esvaiu de sua alma.
- E eu que achava que estaria casada aos meus 45 anos...
Ela entra na banheira, a perna esquerda primeiro, a mão esquerda apóia na parede e então o resto do corpo escorrega para dentro da água quente. A mão direita encontra o maço de cigarros ao lado da saboneteira, dentro dele também está o isqueiro vermelho que comprou numa banca de revistas por R$ 2.
A mão direita leva o cigarro à boca entreaberta, meio ressecada, o polegar da mão esquerda risca a pedra do isqueiro e na quarta tentativa - "sabia que deveria ter testado antes" - ela ascende o cigarro, com uma primeira longa tragada.
O corpo escorrega mais um pouco para dentro da água. O relaxamento toma conta da sua mente. Ela simplesmente fita o teto esperando que algo mude na sua vida, que algo aconteça de repentino e inesperadamente, desesperadamente. Ela repassa os principais pontos da sua vida e tenta descobrir onde é que pode ter errado. "Talvez na quinta-série, quando não aceitei ficar com o Rodolfo... A classe inteira tirou com a minha cára. Talvez no terceiro colegial, quando eu dormi em todas as minhas aulas de filosofia. Se bem que a minha vida poderia ser algo realmente diferente se tivesse transado com o meu chefe do meu primeiro emprego... É, definitivamente esse ponto foi crucial."
O cigarro acaba, ela o joga no lixo que fica ao lado da pia. Volta a olhar para o teto e algo acontece, desesperadamente rápido. O... tempo... passa.
Na janela aberta um corvo pousa e, entre um grasnado e outro, ele abre o bico e grita com uma voz metálica: "Nunca mais!"
[winamp: deftones - knife party]
postado por caio teixeira às 2:06 AM |